Material de apoio

Lei cria a obrigatoriedade de temas relacionados à cultura africana no currículo escolar

 LEI Nº 11.645 de Março de 2008

Altera a Lei de nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena”.

O Presidente da República: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

“Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estuda da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história  brasileiras.” (NR)

Brasília, 10 de março de 2008.

Luiz Inácio Lula da Silva



História do Dia Nacional da Consciência Negra

Esta data foi estabelecida pelo projeto lei número 10.639, no dia 9 de janeiro de 2003. Foi escolhida a data de 20 de novembro, pois foi neste dia, no ano de 1695, que morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares.

A homenagem a Zumbi foi mais do que justa, pois este personagem histórico representou a luta do negro contra a escravidão, no período do Brasil Colonial. Ele morreu em combate, defendendo seu povo e sua comunidade. Os quilombos representavam uma resistência ao sistema escravista e também um forma coletiva de manutenção da cultura africana aqui no Brasil. Zumbi lutou até a morte por esta cultura e pela liberdade do seu povo.

Importância da data

A criação desta data foi importante, pois serve como um momento de conscientização e reflexão sobre a importância da cultura e do povo africano na formação da cultura nacional. Os negros africanos colaboraram muito, durante nossa história, nos aspectos políticos, sociais, gastronômicos e religiosos de nosso país. É um dia que devemos comemorar nas escolas, nos espaços culturais e em outros locais, valorizando a cultura afro-brasileira.

 A abolição da escravatura, de forma oficial, só veio em 1888. Porém, os negros sempre resistiram e lutaram contra a opressão e as injustiças advindas da escravidão.

Vale dizer também que sempre ocorreu uma valorização dos personagens históricos de cor branca. Como se a história do Brasil tivesse sido construída somente pelos europeus e seus descendentes. Imperadores, navegadores, bandeirantes, líderes militares entre outros foram sempre considerados hérois nacionais. Agora temos a valorização de um líder negro em nossa história e, esperamos, que em breve outros personagens históricos de origem africana sejam valorizados por nosso povo e por nossa história. Passos importantes estão sendo tomados neste sentido, pois nas escolas brasileiras já é obrigatória a inclusão de disciplinas e conteúdos que visam estudar a história da África e a cultura afro-brasileira.

 

 

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS
Barcelona 12 – 15 de janeiro de 2004

A ÁFRICA PODE CONTRIBUIR PARA RESOLVER A CRISE DO OCIDENTE?
                                                                                                         Serge Latouche,
Professor emérito da Universidade de Paris XI
Tradução: Acácio Sidinei Almeida Santos
acacioalmeida@gmail.com

INTRODUÇÃO: O paradoxo da questão
           
Estamos tão habituados a pensar que é preciso ajudar a África, que parece inconveniente fazer a pergunta de maneira inversa: a África não poderia ajudar a resolver a crise do Ocidente? No meu livro “L’autre Afrique, entre don et marché”, esforço-me para mostrar que se queremos ajudar alguém é preciso ter também o que pedir em troca. O dom sem contra dom é perverso, é uma forma de vontade de dominação e de arrogância. O fim da África seria provavelmente também o nosso fim, pois a África não teria mais como nos oferecer os remédios que precisamos urgentemente. É tempo, sem dúvida, de confessar que o que acreditamos poder oferecer à África nos interessa menos do que aquilo que ela nos oferece. É certo que a propósito dos “dons” recebidos dela, pensamos imediatamente na música e na estética, domínios nos quais a África muito nos enriqueceu. Entretanto, se reconhecêssemos que estamos doentes, talvez pudéssemos receber da África os remédios para nossos males. A crise no Ocidente vai além da falta de inspirações na criatividade artística. A aparente prosperidade econômica é talvez muito mais vulnerável do que parece e esconde uma ameaça de catástrofe ecológica e societária. Devemos fazer o nosso dever de casa. As doenças mentais, as epidemias de estresse, a violência e a insegurança nas periferias, o uso massivo de drogas, a solidão dos excluídos, e também os altos índices de suicídio são sintomas evidentes do mal-estar da civilização.
Pedindo ajuda à outra África para resolver nossos problemas materiais, sociais e culturais, estaríamos reconhecendo-a como uma autêntica parceira. E é só assim que podemos contribuir para reforçar esta parceria. Se a África é pobre naquilo que somos ricos, ela se revela rica naquilo que somos pobres. Existem na África verdadeiros experts das relações harmoniosas entre o ser humano e o meio ambiente que poderiam contribuir para nos retirar da crise ecológica (se é que já não é tarde demais). Encontram-se na África especialistas em relações sociais e na resolução de conflitos que poderiam nos propor receitas em matéria de relações entre gerações, entre homem e mulher, entre maiorias e minorias, etc. Para isso, é necessário fazer uma “descentralização cognitiva”, pois não é no referencial da nossa percepção de mundo que os remédios africanos podem ser eficazes. As receitas de um desenvolvimento nos moldes africanos correm o risco de ser inoperantes. Por outro lado, a África pode nos ajudar a sair do tipo de economia que nos torna doentes.

I - O fracasso previsível do desenvolvimento “alternativo” segundo o modelo africano.
Por vezes a auto-organização dos africanos excluídos foi pensada como um “outro” desenvolvimento. Este “desenvolvimento alternativo” segundo os moldes africanos não poderia ser uma plataforma de soluções para nossos próprios problemas? Esta forma de colocar a questão está em conformidade com a lógica das “estratégias” e dos especialistas, mas ela apóia-se num contra-senso sobre a experiência africana.

A)   A economia do débrouille[1]
O milagre da sobrevivência da África subsaariana se resume numa única palavra: A “economia do débrouille”. Assim é chamado o conjunto de pequenas empresas e de artesãos que trabalham para a clientela popular: ferreiros que restauram objetos, marceneiros e alfaiates do bairro, e o conjunto das “pequenas atividades” (flanelinhas, trançadoras de cabelo, caminhoneiros com velhos veículos andando pela graça a Deus, Alhamdoulillah... auxiliares que orientam os passageiros para “ônibus expressos”, “bana-bana [vans clandestinas] ou pequenos comerciantes que vendem para as donas de casa que não possuem geladeira três colheradas de molho de tomate concentrado, dois tabletes de caldo maggi, óleo em pequenas quantidades ou pequenos saches de leite em pó ou de nescafé[2]). Teríamos desta forma um viveiro de “empresários de pés descalços”[3] vivendo da astúcia no centro do planeta dos excluídos graças ao desenvolvimento de uma atividade quase profissional. É o núcleo central do setor informal das análises da maior parte dos economistas.
O dinamismo testemunhado pelos excluídos do desenvolvimento mimético, o reconhecido desempenho do setor informal em matéria de emprego, os resultados satisfatórios do ponto de vista dos rendimentos, não representam as marcas de uma outra economia, até mais importante, a ser considerada? O inegável sucesso, mesmo segundo os critérios da economia oficial e convencional, de certos atores deste setor informal em termos de lucros e crescimento, onde as empresas clássicas (ocidentais ou públicas) foram mal sucedidas, não comprovam um verdadeiro “management a la africana”? Em oposição a imagens estereotipadas, os informalizados não são necessariamente indigentes. Com o humor bem conhecido dos africanos, um bairro de Grand Yoff foi batizado de “bairro dos milionários” porque entre os primeiros moradores existiam alguns joalheiros. Mas entre os moradores, encontramos também autênticos milionários.
O impossível desenvolvimento da África não estaria na exploração desta mina? Sistematizando, transpondo e incentivando essas experiências de auto-organização, dando apoio técnico, financeiro e de regulamentação, passaríamos enfim da bricolagem à indústria de plena atividade[4].
            Esta interpretação do potencial da “economia informal” está cada vez mais difundida. É divulgada tanto pelos grandes organismos internacionais – o FMI, o Banco Mundial, a OIT – como também pelas instâncias bilaterais e os organismos de cooperação, como o Fundo Francês de Desenvolvimento[5]. É também, com algumas variações, a da maioria das ONGs de desenvolvimento, como a de vários centros de pesquisas ou de pesquisadores independentes. Essa perspectiva tem alguns méritos.
            Se tivermos uma visão desenvolvimentista e economicista, isto é, se pensamos que o desenvolvimento é universalizável e que não há soluções fora do crescimento econômico pleno, se acreditamos também que a economia existe por si só, e que ela é a base da vida social, então só poderemos ter um olhar negativo ou condescendente sobre o setor informal. Diante da evidência dos “sucessos” de alguns “empresários de pés descalços”, reconheceremos com simpatia os resultados da bricolagem. Entretanto, este setor informal será sempre visto como uma economia de tapa-buracos à espera de um futuro melhor. Evitaremos a comparação entre essas proezas irrisórias e as proezas da indústria técnica mundial capaz de lançar satélites de telecomunicação no espaço ou de criar espécies transgênicas. Analisando o setor informal de acordo com os padrões da economia dominante ocidental e no horizonte do desenvolvimento, reduzindo a sociabilidade a um aspecto pitoresco, complementar ou auxiliar da uma única coisa importante, a economia, seremos tentados a enxergar esta realidade atípica como um tipo de substituto para a economia e para o desenvolvimento, visto como um desenvolvimento espontâneo, alternativo, irrisório ou respeitável, mas sempre à espera de um futuro melhor, isto é aguardando para reintegrar-se à terra prometida da modernidade, da economia oficial e do verdadeiro desenvolvimento. Em suma, não veremos além de uma figura da transição.
            Aqueles que persistem em manter uma visão desenvolvimentista e economicista, embora reconheçam a vitalidade do setor informal, proclamam que o fracasso do desenvolvimento no terceiro mundo não se dá pela falta de espírito de empreendedorismo ou ausência de uma classe de empreendedores, como vem sendo dito, mas sim pela falta de investimento e de infraestrutura. A economia do desenvolvimento, ao incorporar o setor informal, continua rodando em círculo, apenas servindo para encher os bolsos dos especialistas que dela vivem... Pode até mesmo acontecer que os especialistas em setor financeiro informal (as tontines, fundos comunitários), impressionados pelo volume da poupança, contradigam os especialistas do informal industrial declarando: “falta comportamento de empreendedor e oportunidade de investimento. É de um administrador que a África precisa mais do que de qualquer outra coisa” [6]. No entanto, há cada vez mais estudantes africanos formados nas business schools anglo-saxônicas, mas não são eles que fundam as empresas competitivas, mas sim mulheres que não sabem ler nem escrever...

B) As lições do fracasso: a falta de imaginário econômico e desenvolvimentista.
Os sucessos relativos do débrouille africano não se inscrevem de fato no paradigma ocidental do desenvolvimento e da economia. Os desempenhos “econômicos” africanos não podem constituir de nenhuma maneira um modelo de desenvolvimento alternativo. Eles oferecem poucas receitas adequadas para remediar as carências das economias e das sociedades do Norte. Representam antes uma saída do “economismo” e uma forma de inserção da economia no social. Convém falar mais de sociedade vernacular do que de economia informal. O espírito do dom e as lógicas de reciprocidade explicam o milagre deste relativo sucesso fora da economia. A economia e o desenvolvimento são conceitos etnocêntricos que não correspondem à interpretação das práticas do débrouille, nem ao imaginário africano. Antes do contato com o Ocidente, o conceito de desenvolvimento não existia. Na maior parte das sociedades africanas, a própria palavra “desenvolvimento” não tem nenhum equivalente na língua local. Segundo Gilbert Rist, “os Bubi da Guiné Equatorial utilizam um termo que significa ao mesmo tempo crescer e morrer, e os ruandeses constroem o desenvolvimento a partir de um verbo que significa andar, se deslocar, sem que uma direção específica seja definida na idéia”. Ainda segundo Gilbert Rist “esta lacuna não tem nada de estranho, ela indica simplesmente que outras sociedades não consideram que sua produção seja dependente do acúmulo contínuo de saberes e de bens com a função de tornar melhor o futuro em relação ao passado.”[7] Desta forma, em Wolof, encontramos o equivalente da palavra “desenvolvimento” em um termo que significa “a voz do chefe”. Os camaroneses de língua Eton são ainda mais explícitos. Eles falam de “sonho do homem branco”. “A representação do desenvolvimento não possui equivalente na língua Moré e se traduz pela frase: tönd maoondame tenga taoor kënd yïnga (nós lutamos para que sobre a terra [na aldeia] as coisas funcionem para o corpo [para mim]).”[8]
            Esta ausência de palavras para definir o desenvolvimento é um indício, mas ela sozinha não basta para provar a ausência de qualquer visão desenvolvimentista e econômica. Apenas mostra que os valores sobre os quais repousam o desenvolvimento e, muito particularmente, o progresso, não correspondem em nada às profundas aspirações africanas. Estes valores estão ligados à história do Ocidente e, provavelmente, não têm nenhum sentido para outras sociedades.
            No que diz respeito à África negra, os antropólogos observaram que a percepção do tempo é caracterizada por uma clara orientação para o passado. “Os Sara do Chade pensam que o que está atrás dos olhos, e que eles não podem ver, é o futuro, enquanto que o passado se encontra na frente, porque ele é conhecido”. O autor complementa: “é difícil contestar a lógica de tal representação.”[9] Andrzej Zajaczkowski faz uma observação análoga para os Kikuyu[10]. Isso parece ser uma generalidade e não só na África; mas para não fugir do assunto, esta representação dificulta a compreensão de uma noção como a de progresso, tão essencial para o imaginário do desenvolvimento.
            É bom acrescentar a tudo isso a ausência total, nas sociedades animistas, de crença no controle sobre a natureza. Se a píton é meu ancestral, como pensam os Ashanti, ou o crocodilo, para os Bakongo, é difícil fabricar cintos e bolsas com seu couro. Se as florestas são sagradas, como podem ser exploradas racionalmente? Na África, até hoje, enfrenta-se este tipo de obstáculo ao desenvolvimento. No sul do Togo a exploração da lagoa de Anecho, morada do crocodilo totêmico, só foi possível depois da expulsão de uma parte dos moradores. O mesmo ocorreu com a lagoa Ebrié em Abidjan, que foi palco de graves conflitos com a população local.
            Fora dos mitos que fundamentam a pretensão do controle sobre a natureza e a fé no progresso, a idéia de desenvolvimento é totalmente desprovida de sentido e as práticas a ela ligadas são rigorosamente impossíveis por serem impensáveis e proibidas.
            “O que os franceses chamam de desenvolvimento é o que querem os aldeões? Questiona Thierno BA, diretor de uma ONG senegalesa, se referindo ao projeto de exploração de um rio. Não. O que eles querem é o que a língua pulaar chama de bamtaare. O que isso significa? É a busca pela comunidade de um bem-estar social harmonioso fortemente enraizado na sua solidariedade, um bem-estar social harmonioso onde cada um dos membros, do mais rico ao mais pobre, pode encontrar seu lugar e sua realização pessoal.”[11]
            Certamente o desenvolvimento, hoje na África, se tornou algo familiar e a própria palavra se tornou sagrada. É um fetiche onde todos os desejos se enredam. “Seguir o desenvolvimento” é “ganhar os projetos” ou “ganhar um branco”, é o remédio milagroso para todos os males, inclusive a bruxaria. Como bem notou P-J Laurent “as pessoas procuram fetiches para proteger o capital: é uma forma de “bruxaria acumulativa.”[12] Ainda segundo esse autor, “o desenvolvimento é um conceito aparentemente estrangeiro, pelo qual tudo se torna possível entre os mais velhos e os mais novos, benfeitores e necessitados.” As oportunidades do desenvolvimento – penso aqui na sua longevidade – residem na sua pluralidade semântica. Ele é conduzido, sobre o modo do não dito e da não elucidação, a conciliações às vezes surpreendentes. Desta forma, em seu nome, os muçulmanos de Kulkinka criarão porcos. Nada é proibido se isso serve para o desenvolvimento[13]. Como podemos observar, a ocidentalização dos espíritos traz consigo uma série de problemas.
            A controvérsia com os economistas na interpretação do fenômeno do informal se apóia sobre uma série de pressuposições a respeito do dispositivo de compreensão da realidade. Enquanto o antropólogo vê ou veria no informal um fenômeno social, o economista apenas vê neste fenômeno uma forma particular e atípica de atividade econômica. Munido de seus referenciais universalistas e evolucionistas, ele enxerga na economia do tapa-buraco um belo exemplo de luta no mundo da necessidade. O economista-econometrista, armado com sua bateria de critérios e sua calculadora, se apressará em medir, avaliar, comparar e, finalmente, “reformalizar”, pelo menos no abstrato, este setor alérgico às estatísticas. Graças à onipresença deste valor comumente falso, o dinheiro, será possível tornar visível o invisível e produzir os índices de níveis de vida internacionalmente reconhecidos, à luz da pobreza e da riqueza. A reformalização conceitual é um primeiro passo para a normalização real. Esta inserção nas normas universais, isto é ocidentais, já pode ser considerada como uma agressão contra a resistência dos excluídos.[14]
O modo de funcionar dos artesãos, mesmo o dos mais capacitados, deixa sempre perplexo o observador. Exemplo: dois ferreiros instalados na beira da estrada de Kaolak. Esta iniciativa, incentivada por uma ONG, tem como objetivo satisfazer a clientela rural da vizinhança. No entanto, a localização, imposta pelo uso de ferramentas elétricas sofisticadas, favorece uma vocação comercial para demandas urbanas. Estes ferreiros, vivendo certamente em castas, mas respeitando apenas uma pequena parte dos costumes ancestrais, são muito integrados nas relações mercantis. Ora, nos deparamos com o seguinte paradoxo: há necessidades incontestáveis e, no entanto, a produção está longe de atingir sua capacidade máxima. Por outro lado, a situação do artesão não é nada invejável, pois às vezes os aprendizes são muitos e não tem o que fazer, ou são poucos para as necessidades do trabalho. O local é incrivelmente inadequado e o equipamento, mais do que sumário. Enfim, a acumulação não ocorre, mesmo quando encomendas importantes geram rendimentos inesperados.
O primeiro reflexo de um expert economista é o de querer introduzir um pouco de racionalidade. “Tudo bem, isso funciona, mas não poderia funcionar muito melhor?” Busca-se aumentar a produtividade, acelerar as vendas, aperfeiçoar as infraestruturas, investir em equipamentos e entrar no mundo virtuoso da acumulação e do crescimento ilimitado. Este reflexo inteligente é, sem dúvida, o caminho mais curto para o fracasso. André Whittaker, empresário e especialista da “gestão crioula”, opina com muito bom humor sobre uma obra de expert (Le financement de la pétite entreprise em Afrique, L’Harmattan, 1995): “Este guia do bom gestor é na verdade um guia do mau gestor. Teria sido melhor dar como título a esta obra: Manual para fracassar na gestão de uma empresa na África ou ainda Guia e receitas para o fracasso.”[15] Os artesãos que seguiram as instruções destes conselheiros (bons samaritanos de ONGs, ou outros) acabaram falindo ou voltaram para suas atividades anteriores. No que diz respeito aos artesãos dos subúrbios populares, nunca se deve esquecer que sua própria existência é fruto de um milagre. É o que devemos começar a entender e analisar. Simplesmente, não existe mercado no sentido econômico da palavra, isto é, não há demanda solvente. De uma clientela sem renda, não se pode esperar a fortuna, mas já é uma tentativa bem-sucedida o fato da atividade garantir sua sobrevivência e a desta mesma clientela! E, se as empresas racionais funcionassem, existiriam muitas delas, pois não faltaram iniciativas em cem anos de colonização e quarenta de desenvolvimento!
Por outro lado, o reconhecimento da cultura popular permite a legitimação das práticas da economia neo-clânica. Essas produções culturais dos excluídos vão dos cultos sincréticos e das seitas proféticas até o saber-fazer técnico. Nunca se destacará suficientemente a importância da criação popular a nível simbólico através das crenças e dos cultos. Trata-se neste caso de um aspecto fundamental da outra sociedade que escapa totalmente ao economista.
No informal, não estamos em uma economia, estamos em uma outra sociedade. O setor informal se encontra dissolvido, incorporado no social, principalmente nas redes complexas que estruturam esses subúrbios. É um erro ver nas experiências africanas uma forma alternativa da mesma coisa. A fecundidade desta aventura deve ser procurada em outro lugar.

II. A outra África como modelo de saída da economia

Ao lado da completa solidão moral da África oficial, ao lado da decrepitude da África ocidentalizada, existe uma outra África bem saudável. Esta África dos exilados da economia mundial e da sociedade planetária, dos excluídos no sentido dominante, persiste em viver e querer viver, mesmo na contracorrente.
Esta outra África não é a da racionalidade econômica. Se o mercado é presente, ele não é onipresente. Não é uma sociedade de mercado, no sentido de sociedade de mercado total. Não é mais a África tradicional comunitária, se é que esta realmente existiu. É uma África da bricolagem em todas as áreas e níveis, entre o dom e o mercado, entre os rituais oblativos e a globalização da economia. Por ter perdido a batalha econômica, será que a África perdeu definitivamente a guerra das civilizações? Essa é a questão. A economia foi realmente derrotada, mas a sociedade sobreviveu a esta derrota. Isso significa que as funções que atribuímos às instâncias técnica e econômica (a produção de “riquezas”) foram mais ou menos assumidas pela sociedade. A explicação mais plausível é que a economia e a técnica tiveram um impacto no social, ou para falar como Karl Polanyi, economia e técnica foram reencaixadas. Isso se observa geralmente muito mais no fenômeno da economia considerada informal do que na persistência da solidariedade cotidiana.
É esta forma de resposta pela engenhosidade local que eu tentei analisar no meu livro “L´autre Afrique.”[16] Esta outra África pode ser caracterizada pela auto-organização social, pela lógica do dom e por uma certa sabedoria democrática paradoxal.

A) A auto-organização societária
Por que a outra África? A África oficial, a África das independências, entrou em falência econômica e política. Falência econômica: menos de 2% do PNB mundial, o equivalente ao PIB da Bélgica ou das 15 maiores fortunas do planeta... Falência política: golpes de Estado, guerras civis, corrupção, genocídios, etc. Tudo isso constitui a fonte para o Afro-pessimismo. Entretanto, se esta constatação do fracasso é unânime, inclusive para os intelectuais africanos, é a prova do fracasso da África oficial. É o fracasso da ocidentalização (e a globalização é apenas a continuação do mesmo processo), isto é, fracasso do mimetismo econômico e político. Felizmente existe uma “outra” África. A sobrevivência de 600 a 800 milhões de náufragos é um milagre. A outra África é a África das savanas, das florestas e das aldeias, a África dos subúrbios e dos bairros populares. Em suma, é a África da “sociedade civil”, a África das reuniões nacionais. Uma África bem viva, capaz de se auto-organizar diante da penúria e de inventar a verdadeira alegria de viver.
A situação de exclusão a que são condenados grande parte das massas dos subúrbios africanos destrói e rejeita todo significado aparente, oficial, da sua existência.[17] Fora da grande sociedade e dos seus valores universais, de fato, a vida não pode ter sentido. E, no entanto, os “náufragos do desenvolvimento”, se auto-organizando no débrouille, fazem a bricolagem de uma vida na margem. Os marginalizados da grande sociedade, doravante globalizada, fazem o milagre da sua sobrevivência reinventando o laço social mediante o funcionamento deste social. Excluídos das formas canônicas da modernidade, da cidadania do Estado-nação e da participação no mercado nacional e mundial, eles vivem graças às redes de solidariedade “neo-clânicas” por eles montadas. O segredo deste relativo sucesso está nas estratégias “relacionais”. Essas estratégias incorporam qualquer tipo de atividade “econômica”, mas essas atividades não são profissionalizadas. As oportunidades ocasionais, as bricolagens e o “débrouille” de cada um se inscrevem nas redes. Os membros, aqueles que estão conectados entre si em uma rede, formam os grupos de aliados. No fundo, essas estratégias baseadas num jogo sutil de caixas sociais e econômicas são comparáveis às estratégias de administração de lares, que na maioria dos casos, são estratégias transpostas a uma sociedade na qual os membros da família extensa se contam por centenas. As redes se estruturam a partir do modelo da família segundo a lógica clânica, com mães sociais e com “velhos sociais”.[18] Os economistas se enganam totalmente quando observam “o informal” apenas do ponto de vista da economia. O dinamismo dessas sociedades vernaculares se manifesta não somente no nível tecno-econômico, mas também na criação imaginária e na bricolagem de uma construção social. Se existe engenhosidade mais do que engenheiros, mais empreendedorismo do que empreendedores, industrializados e não industriais, é exatamente porque estamos num outro contexto, fora do paradigma dominante.
B)   A lógica da doação e da solidariedade africana.
O funcionamento da sociedade vernacular se inscreve na persistência, ou até mesmo na ressurgência de uma certa “solidariedade africana”. As sociedades africanas ignoraram por muito tempo o individualismo e continuam ignorando com força, apesar das pressões dos processos de individualização[19]. O imperialismo do social se manifesta pela importância das relações de parentesco. O parentesco, para além do grupo da família extensa, se estende para as relações de amizade, de vizinhança, de associação esportiva, cultural, política ou religiosa; as relações de trabalho e as formas de poder. Ele é reativado e reforçado pelas cerimônias, pelos cultos aos ancestrais, pelas ligações com a terra, pelas relações com o mundo invisível.  Tudo isso dá vida à tão elogiada solidariedade africana que não possui um equivalente em outro lugar.
Esta solidariedade polimórfica resiste até mesmo à emigração e podemos observá-la até nos subúrbios parisienses nas comunidades malinesas ou senegalesas, através da hospedagem obrigatória dos “irmãos mais novos” que chegam, através do envio de dinheiro para sustentar a família que ficou no país de origem, através das cotizações feitas para construir a mesquita ou a escola na aldeia.
Esta forte valorização do social afasta o isolamento e a solidão. Nos casos mais cruciais, esta valorização ajuda a suportar e a resistir diante da dificuldade. Ela é também a razão do sucesso e da especificidade da economia africana vernacular. As obrigações de doar, de receber e retribuir tecem os laços entre os humanos e os deuses, os vivos e os mortos, entre os pais e filhos, entre os mais velhos e os mais novos, entre homens e mulheres e entre uma geração e outra. Elas burlam as “leis” do mercado, limitam os malefícios das relações mercantis e dão um mínimo de garantia contra a exclusão econômica e social.
O dinheiro (xaalis, em wolof) está onipresente de fato e no imaginário, mas ele não tem a mesma significação, nem o mesmo uso no nosso planeta e no do informal. Na grande sociedade o dinheiro, equivalente convencional, é uma abstração. É a “moeda”.[20] A nota de papel e as moedas metálicas são de uso restrito. Primeiro, porque a moeda é contabilizável, ela circula em forma de cheques e de cartões de crédito. É um jogo de lançamentos contábeis que determina o essencial dos direitos dos agentes, garantido por instituições poderosas que são os bancos. Nos bairros populares e nos subúrbios africanos, ao contrário, o dinheiro é concreto e tangível, ele é um instrumento de aquisição de posições no jogo do status. Ele se adéqua sem problema às formas arcaicas das jóias de ouro e de prata, de cabeças de gado ou de tecidos, que determinam o status das pessoas. Os alhaji do Níger (aqueles que fizeram a peregrinação à Arábia Saudita) fazem de tudo para dar um sorriso largo, apenas para mostrar os dentes de ouro que colocaram quando foram à Meca... No sul da Tunísia é freqüente ver penduradas no vestido da noiva as notas de dinheiro que ela recebeu... Em todos esses casos o dinheiro serve para sustentar as redes sociais. Os próprios interessados falam em dinheiro “quente” e em dinheiro “frio”. O dinheiro adquirido dentro das redes sociais se opõe à moeda do homem branco, pouco familiar e abstrato. O primeiro, geralmente moedas e notas de pequeno valor (em grandes maços às vezes) suadas, é amarrado num pano, escondido debaixo das roupas e manuseado cuidadosamente, contado e recontado na esperança de um acréscimo. O segundo é o das ONGs, da assistência técnica. Ele é avaliado em milhões e é dilapidado no abstrato. As inúmeras tontines (fundos comunitários) participam desta circulação diferente do dinheiro. Esses “bancos dos pobres”, bem diferentes da classificação dada pelo Banco Mundial sob a forma de “micro-crédito”, garantem um controle social do uso da poupança, mas também assumem outras funções sem esquecer as festividades que as acompanham.
A moeda e mesmo as relações mercantis fariam funcionar desta forma uma sociedade não mercantil. Que fique claro, nesse caso queremos falar de uma sociedade que além de facilitar trocas em grande escala e de viver uma circulação monetária intensa, não obedece totalmente a lógica mercantil. A obrigação de solidariedade domina totalmente a vida econômica social. O que salta aos olhos do observador analisando as conexões de membros da “economia” neo-clânica é a importância do tempo, da energia e dos recursos investidos nas relações sociais. Considerando a intensidade desta atividade, seria abusivo na maioria dos casos falar de trabalho no sentido artesanal do termo. Emprestar, pegar emprestado, doar, receber, ajudar mutuamente, fazer uma encomenda, entregar, pedir informações, supõe encontros, visitas, recepções e discussões. Tudo isso leva um tempo considerável e ocupa uma parte importante do dia, sem esquecer do tempo dedicado à festa, à dança, ao sonho ou ao jogo...
Tudo o que se recebe é imediatamente inserido na rede social, seja alimento ou dinheiro[21], seja porque foi doado ou porque se antecipa à necessidade de pegar emprestado, ou ainda e de qualquer forma, porque gostamos que os parentes compartilhem daquilo que recebemos ou queremos proporcionar a eles algum prazer. Estamos cientes de que uma boa ação sempre tem um bom retorno. A atitude geral é o sentimento de dever muito aos seus membros e não o de um credor que é sempre lesado. Se o dom funciona bem, cada um desses atores estima ter recebido mais do que doou, enquanto que quando o sistema funciona mal, cada membro pensa ter recebido menos do que aquilo que doou.[22] Este sentimento é evidentemente fundamental no bom funcionamento das lógicas oblativas (mas não é certamente o que acontece em todos os casos). Os moradores de Grand Yoff usam o termo de caixas para se referirem aos depósitos e investimentos relacionais. Essas caixas em poder dos membros do clã são indiferentemente econômicas e sociais. Simetricamente, em caso de necessidade, e a necessidade é neste caso quase endêmica, a rede será mobilizada, e as diferentes caixas serão abertas. Às vezes, uma caixa ocupará o lugar de outra.
Tanto aqui como em outros lugares, o laço social funciona na base da troca, mas a troca com ou sem moeda, se baseia mais na tripla obrigação de dar, receber e retribuir, tal como analisada por Marcel Mauss. O que é central e fundamental na lógica do dom é que o laço substitui o bem.[23]

C)   A sabedoria democrática paradoxal da reunião
            A reunião africana (palabre) é às vezes um clichê folclórico e, por isso, uma realidade pouca estudada. Sabe-se que a África subsaariana vive ou vivia em aldeias e que os problemas da comunidade, o político, se resolviam e ainda se resolvem sob a “árvore da palavra”, na “casa da palavra” ou ainda na “casa dos homens” (o abââ para os Beti e os Fang, o banza no mundo bantu). Trata-se normalmente de simples alpendres com tetos de palha. Viajantes, missionários, comerciantes, militares e colonos, mais do que os etnólogos, falaram e descreveram essas deliberações intermináveis. Associa-se, com razão, o fenômeno recente das consultas nacionais através das quais as sociedades civis africanas afirmam a exigência democrática e a sua exasperação contra as ditaduras corruptas, à consulta local, modelo de resolução dos conflitos de poder[24]. A consulta reúne os anciãos, os sábios, os nobres, os guerreiros e a maioria dos moradores, inclusive os prisioneiros, sem excluir os animais que podem ter uma função importante no pagamento das taxas de litígios ou servir de bode expiatório. Desta forma, entre os Bobo do Burkina Faso se a falta cometida justifica a pena de morte, substitui-se um homem livre dando em sacrifício seus animais. Entre os Béti, se o culpado deve indenizar a vítima oferecendo uma cabra, a vítima deve matar a cabra e dar uma parte para a família do culpado como prova de que não guardou nenhum rancor.[25] Os ancestrais e os espíritos são consultados e assumem uma função importante para alguns povos.
            Certamente os poderes em exercício procuraram instrumentalizar a consulta. Os chefes de Estados no poder graças à independência se apoiaram nela para contestar o multipartidarismo e justificar o partido único. Desta forma, Julius Nyerere preconizava uma “democracia a la africana”, não necessariamente multipartidária, mas inspirada no modelo da palabre (reuniões comunitárias com a participação das pessoas da aldeia), consulta “onde os anciãos se reúnem embaixo da grande árvore e discutem até chegarem a um acordo”.[26] Da mesma forma, a Igreja na sua estratégia de inculturação (ou vontade de inscrever a mensagem do evangelho na tradição africana) tentou transformar a missa numa grande palabre. O movimento das “reuniões nacionais”, como vimos, foi considerado uma tentativa de se reconciliar com a “liturgia da palavra”. “Cada país africano, segundo Bidima, quer sua conferência nacional. Esta foi interpretada como uma grande consulta instituindo uma nova democracia à africana”[27] É certo que a palabre como justiça de proximidade e modo de gestão de conflitos é suscetível de resolver muitos problemas internos e externos. Ao contrário, “as guerras e genocídios deste continente, segundo Bidima, foram facilitados pela ausência de palabre.”[28] A palabre pode evitar também formas de justiça imediata e expeditiva como linchamento público ou a agressão que ocorre hoje em dia diante da ausência das instituições policiais e judiciárias.
            Deste ponto de vista poderíamos falar como Nyerere e outros sobre uma forma africana de democracia. É claro que isso não significa que o funcionamento concreto das palabres corresponde à idéia que fazemos da democracia, da mesma forma que o funcionamento das nossas sociedades não corresponde ao ideal democrático. A palabre serve, na maioria dos casos, para manter uma forma mais ou menos abusiva da “gerontocracia” e dá lugar a todo tipo de abuso como nas próprias instituições. “A organização do kaande, a grande palabre, segundo Peter Geschiere, confirma a preponderância dos mais velhos”, pois são eles os mestres na arte da palavra e no conhecimento dos costumes. Eles são os guardiões da memória da sociedade. A instrumentalização feita pelos anciãos, cada vez mais criticável e autoritária no contexto atual, se baseava historicamente numa forma de necessidade comum. “Na velhice, observa Micheal Singleton, sabe-se onde se encontra o animal de caça e as boas terras, sabe-se como encarar os problemas de administração das relações humanas (luto, divórcio, conflitos), sabe-se interagir com as Autoridades ancestrais (que têm o controle da chuva, da fertilidade e da fecundidade).” “O respeito literal pelos direitos individuais à maneira do iluminismo ocidental, complementa o autor, era um ‘luxo’ que a comunidade não podia permitir – era preciso que os jovens aceitassem a autoridade dos anciãos, que as mulheres fossem submissas aos seus maridos e que os estrangeiros se tornassem menos estranhos, porque a aldeia devia se manter graças ao consenso operativo (que não poderia ter se realizado se cada um reivindicasse sua parte legal)”[29]. A realidade é que é na palabre que se manifesta, na África, a razão prática, e é ali que podemos ver em execução um pensamento da ação efetiva no social e sobre o social. Não se trata somente de uma instituição jurídica, embora muitos a tenham reduzido a um tribunal, mas de uma instituição política no sentido mais amplo do termo. Como defendido por Jean Godefroy Bidima: “a palabre é por excelência o domínio do político” [30]. Esta discussão que evolui até a unanimidade supõe a igualdade e a total liberdade de expressão dos membros da mesma comunidade, de um lado, mas não exclui violentos conflitos, por outro lado. A palabre “recoloca no seio de uma dada comunidade o papel do simbólico, ela redefine sua identidade, relembra a sua origem, assume a violência e busca as soluções para consolidar a convivência”[31].
            Os processos procedimentos utilizados na arte da conciliação geral mereceriam um estudo aprofundado. Eles não têm nada de racional e são totalmente ligados ao contexto. Não podem ser inscritos de maneira alguma em um código da sabedoria universal, como aqueles da China que nos são mais próximos. É o caso, por exemplo, da tática familiar usada pelos mestres da palavra Maka e que se revela incrivelmente eficaz na cultura local. Ela consiste em apoiar-se sobre a concepção “muito grande da família africana” para relembrar vários laços de parentesco desconhecidos pelos protagonistas, que acabam sendo enredados na trama e “calando o bico”. “O sangue cobre a verdade”, declara um dos requerentes, mistificado pela retórica que acaba de comprovar que a parte adversária era “no fundo” a filha do seu tio materno, a mulher de seu genro e, finalmente, de certa forma, sua filha. Como resistir, de fato, a tal descoberta digna do complexo de Édipo, desta vez no sentido positivo?
            Reencontramos, neste contexto, a estratégia da familiarização que domina a troca mercantil e ameniza o antagonismo dos interesses. Os pan-africanistas postularam um parentesco comum a todos os africanos para tornar impossíveis os conflitos. Esta estratégia é interessante, e vemos claramente que algumas crises julgadas insolúveis pelos europeus encontram às vezes soluções inesperadas na África no momento em que pareciam sentimentos incuráveis de ódio. No entanto, seria errado e perigoso querer ocultar a existência e a gravidade do conflito. Para falar como Paul Ricoeur, a conclusão é sempre um “consenso conflituoso”[32].
            O objetivo dessas reuniões é mais a pacificação e a reconciliação do que a busca da justiça em si. Parafraseando Singleton, trata-se da busca de um “compromisso histórico”. “Às vezes, ninguém é denunciado e o conflito é atribuído a um mau espírito. Mas todos sabem que se trata de uma forma de não ofender a família acusada.”[33] O peso dos ancestrais não é suficiente para se chegar a este acordo. Philippe Laburthe-Tolra insiste sobre a importância do consenso. “No que diz respeito ao relato dos fatos, continua o autor, a aprovação do público é sempre solicitada, e é a mesma coisa em relação à sentença.” Segundo Laburthe-Tolra “a unanimidade dava a todos o sentimento de viver em comunidade junto com os espíritos dos ancestrais (para quem está reservado um lugar) e é a eles que se refere quando se afirma: “os Ewondo” ou os “Benë falaram”. As autoridades do mundo invisível intervêm para sancionar e garantir a decisão jurídica, da mesma forma que intervieram para iniciar o processo ou que intervirão para que a justiça seja respeitada, caso o culpado tente burlar a decisão[34]. A palabre deve então se concluir pela reconciliação, ao menos aparente, das partes. Entre os Odjukru da Costa do Marfim, a palabre (emokr) termina com a cerimônia pia pia ok, durante a qual cada um, provando o sal, vem se esvaziar do rancor guardado[35].
            O que caracteriza o exercício da razão prática neste caso é justamente que o fato dela se manifestar num contexto “impuro”. O Kaande dos Maka me parece, deste ponto de vista, totalmente representativo da ambigüidade das conciliações africanas, mas, também, da sua verdade. Segundo Geschiere, “mesmo os velhos notáveis não podem mandar no Kaande, eles também precisam convencer e persuadir. Mas essas posturas igualitárias combinam com uma demonstração de ambição e de esforços ostentatórios que não correspondem com o que se entende por ‘igualitarismo’ no Ocidente”[36].
            Segundo Geschiere, “para os Maka todos os homens são, em princípio, iguais. As desigualdades hereditárias importam pouco. Mas é justamente por causa desta igualdade de base que qualquer forma de ascensão deve ser conquistada pessoalmente e que a tendência para destacar os méritos pessoais é tão forte”[37]. Será que isso é mais hipócrita do que nosso discurso ocidental sobre a igualdade de oportunidades que levou Michael Eisner, presidente da Disney, a ganhar mais de um milhão de vezes o salário de seus fornecedores birmaneses de camisetas?[38] Segundo Christopher Dodd, ex-presidente do partido democrata [norte-americano]: “Quer seja você Bill Gates, o homem mais rico da América, ou um desempregado, o seu voto vale o mesmo”. Quem pode acreditar em tais declarações quando vemos o jogo dos lobby decidir as leis?
            Esta “liturgia ancestral da palavra”[39] que é a reunião comunitária nos parece mostrar o teor e o funcionamento da razão africana que a experiência do informal nos permitiu descobrir.
           
CONCLUSÃO: escutar o outro: o diálogo das máscaras
O período pós-desenvolvimento vai ser necessariamente polimórfico. Trata-se da busca de modos de realização coletiva nos quais não será privilegiado um bem-estar material destruidor do ambiente e do laço social. O objetivo de viver bem pode ser buscado de múltiplas formas, segundo os contextos. Em outros termos, trata-se de reconstruir novas culturas. Este objetivo pode ser chamado de umran (realização) como em Ibn Kaldun, swadeshi-sarvodaya (melhora das condições sociais de todos) como para Gandhi[40], ou bamtaare (viver bem juntos) como para os Toucouleurs, ou o ideal de vida que os Borana chamam de fidnaa ou gabbina, “... o brilho de uma pessoa bem nutrida e livre de qualquer preocupação”.[41] O importante é determinar a ruptura com a ação de destruição que se prolonga em nome do desenvolvimento ou da globalização atual. Para os excluídos, para os náufragos do desenvolvimento, pode apenas se tratar de uma forma de síntese entre a tradição perdida e a modernidade inacessível. Essas criações originais, cujos índices de realização podem ser encontrados em qualquer lugar, acendem uma luz de esperança para o período pós-desenvolvimento.
            A lição da outra África na construção de uma alternativa à corrida tecnológica consiste na demonstração da capacidade de sobrevivência mediante estratégias relacionais baseadas no espírito do dom e da liberdade de expressão.
            Um mito africano apresenta as relações entre brancos e negros como o diálogo de duas máscaras. A máscara do branco tem orelhas bem pequenas e uma boca enorme. A máscara do negro tem uma boca bem pequena e grandes orelhas. O branco é aquele que sabe tudo e quer ensinar tudo aos outros, mas ele não sabe escutar. O negro cuja palavra não é recebida, apenas pode escutar contra sua vontade ou por sabedoria.
Aceitando o desafio de pedir conselhos a África, suplicando sua ajuda, sem dúvida daríamos prova desta verdadeira humildade cristã da qual nos tornamos os missionários arrogantes. Mais prosaicamente, estaríamos dizendo que as vias que os excluídos nos subúrbios do terceiro-mundo decidiram por em prática constituem soluções muito respeitáveis para os paradoxos da modernidade e que, apesar do tilintar das nossas bugigangas, não temos nada equivalente para oferecer em termos de calor humano e sentido[42]. Se pudéssemos, talvez trocássemos toda a “nossa” pobreza pela riqueza “deles”.     
Neste caso, em vez de exportar nosso imaginário materialista, economicista e tecnicista, seria bom começar pela sua descolonização. Aprender que podemos viver (e sem dúvida melhor) sem uma acumulação  frenética de objetos e de necessidades novas que põem em risco o futuro do planeta. Redescobrir que nenhuma sociedade preenche satisfatoriamente o ser humano em relação à sua preocupação existencial e a sua infinitude essencial. Libertando-se da prisão do sentido para mergulhar no oceano das necessidades artificiais, o ser humano ocidental vira as costas à sabedoria e a porção de felicidade a ele acessível aqui na terra.

             




[1] N.T. – Nesse contexto, há dificuldade na tradução da expressão “economia do débrouille”. O equivalente em português seria algo como a “economia do ‘se virar’”.
[2]Evelyne Wass, op. cit. p. 70. Voir aussi Soleymane Mbaye: “Secteur informel de Dakar: quelles politiques d’appui?” mémoire IEDES 1995. Abdou Touré, “Lês petis méiers d’Abidjan. L’imagination au secours de La “conjoncture”, Karthala, Paris, 1985.
[3]Belle expression de I’déologue libéral Guy Sorman dans  ‘‘La Nouvelle Richesse des nations’’, Fayard, Paris, 1987.
[4]Sur cette expression due à Pierre Judet, nous renvoyons aux développements consacrés à ce thème dans ‘‘La planète des naufragés’’. PP. 136 et ss. 
[5]Encore connue em Afrique sous son ancien nom de Caisse centrale de coopération économique, ou plus simplement ‘’la caisse’’. 
[6] Michel Lelart - Les systèmes parallèles de collecte de I’épargne, Épargne sans frontière, nº 30, Mars 1993, p. 35.
[7] Gilbert Rist ‘‘Processus culturels et développement’’ 4ème conférence générale de I’EADI, Madrid 1984, p.6.
[8] Pierre Joseph Laurent, Le don comme ruse. Anthropologie de la coopération au dévellopement chez les Mossi du Burkina Faso : la fédération Wend-Yam. avril 1996, Louvain. p. 228.

[9] Gilbert Rist, interculture, nº95, avril1987,p.17
[10]Andrzej Zajaczkowski, Dimension culturelle du développement, publication du Centre d’Wtudes  sur les Pays hors-européens Academie polonaise des Sciences, Varsovie, 1982, p. 40.

[11] Cimade Quand l’Afrique posera  ses conditions, Dossier pour un débat nº67, septembre 96, Fondation pour le progrès de l’homme. p. 43.
[12] Pierre-Joseph Laurent, Le don comme ruse. Anthropologi de la coopération au développement chez les Mossi du Burkina Faso : la fédération Wend-Yam, avril 1996, Louvain. p. 274.
[13] Ibid. p. 226.

[14] Voir Majid Rahnema, La pauvreté globale, une invention qui s’en prend aux pauvres, Interculture nºIII Montréal, Printemps 119. Voir aussi : Le Nord perdu, Repères pour I’après-développement, par G. Rist, M. Rahema et G. Esteva, Éditions d’En bas, Lausanne 1992 et Gustavo Esteva, Une nouvelle source d’espoir ‘’Les marginaux », op. cit.

[15] Son diagnostic rejoint le notre, rationaliser I’informel, c’est le tuer. ‘‘Moderniser étai (...) exogéniser, c’est-à-dire : endettement, montage financier, organisation fornelle, risque, dépendance bancaire, etc’’. André Whittaker. L’analyse transformationelle en sciences sociales. La société antillaise-Guyanaise et le mode de production  créole. Eléments pour une nouvelle théorice de I’entreprise et du développement ou efficience sociale de la production. Thèse, Paris 7, 1996, pp. 286 et 609.

[16] Serge Latouche. ‘‘L’autre Afrique. Entre don et marché’’, Albin Michel paris, 1998.

[17] L’expérience que j’évoquerai concerne principalment la société  néo-clanique ou vernaculaire de Grand yoff, une banlieue de Dakar. II s’agit au fond société de 100 000 personnes (Grand-Yoff) qui vivent largement de leur auto-production sans création de monnaie, grace à la densité de réseaux sociaux dits néo-claniques.
[18] Emmanuel Ndione : Dynamique urbaine d’une société en grappe, ENDADankar 1987. et Le don et le recours, ressorts de l’économie urbaine. ENDA-Dakar 1992.
[19] Alain Marie, Processus d’individuation dans les villes Ouest-Africaines. Paris, Gremovia, Iedes-Cecod, 1994.

[20] Sur cette distinction argent et monnaie, voir par exemple Jean Joseph Goux, « La monnaie ou L’argent » dans « L’économie dévoilée » sous la direction de Serge Latouche, Revue Autrement, Paris, 1995.

[21] L’Enda-Graf a inauguré un système de guichet de marché, géré par les femmes elles-mêmes qui assure la sécurité des dépots faits sur le marché même et permet des prêts importants. Le succès est considérable et le système est en pleine expansion.
[22] Jacques Godbout et Johanne Charbonneau ‘‘La dette positive dans le lien familal’’, in Ce que donner veut dire, don et inérèt, Revue de MAUSS, Nº1, La découverte, Paris 1993.

[23] Jacques Godbout, en collaboration avec Alain Caillé, -L’esprit du don, La découverte, 1992.
[24] F. Eboussi Boulaga, ‘‘Les conférences nationales en Afrique noire : une affaire à suivre’’, paris Karthala, 1993.
[25] Jean-Godefroy Bidima, ‘‘La palabre. une juridiction de la parole’’. Michalon, col. le bien commun, Paris 1997, op. cit, p.21.

[26] Nyerere, The African and Democracy, London, 1961, p. 104.
[27] Bidima, p.66.
[28] Bidima, op. cit. p.45.

[29] Communication personnelle.
[30] Jean-Godefroy Bidima, ‘‘La palabre. Une juridiction de la parole’’. op. cit, Paris 1997, p. 10.
[31] Bidima, op. cit. p. 92.

[32] Paul Ricouer, Entretien, on ‘‘Ethique ET Responsabilité’’, Neuchâtel, A la Baconnière, 1994, p. 16.
[33] Bidima, p. 21.
[34] Laburthe-Tolra, op. cit., p. 348-349.
[35] R.Mel Meledje, ‘‘Emokr, système de gestion des conflits chez les Odjukru’’, Thèse de doctorat, paris 1994. p. 125.
[36] Ibid. p. 108.
[37] Ibid. p. 109 et 110.
[38] Rappelons à tire d’illustrattion que dans le village-monde, les revenus des menbres de la grande famile Disney, en 1993 allait de 97000 $ I’heure pour le directeur Michael Eisner à 7 cents pour le travailleur birman qui fabriquait le jergey ‘‘Mickey and Co’’, soit de 1 à 1385 714... (source Sweatshop watch, 1998, 720 Market Street, San Francisco).
[39] C’est ainsi que Singleton parle de la palabre chez Wakonongo.
[40] Swadeshi: ‘‘terme indien popularisé par Gandhi : confédération de communautés villageosies autonomes dont la prospérité est assurée par une économie orientée vers le besoins locaux’’, Majid Rahneama, op. cit. p.  21.
[41] Dah et Megersa in Post-developpement reader, cité par Rahnema, op. cit. p. 274.
[42] Le seul maire totalement noir et authentiquement breton, Koffi Yamgnane s’est tailé un franc succès en introduisant dans sa petite commune d’adoption de Saint-Coulitz en Finistère un conseil des anciens sur le modèle des groupes de sages de son Togo natal. Cette transposition limitée (ce conseil n’a qu’une existence informelle et sa voix est consultative, non délibérative) en France, d’un élément de I’ingénierie sociale africaine. a eu d’ores et déja des effets très positifs et unanimement reconnus tant sur le fonctionnement communal que sur la situation morale des vieillards et retraités concernés. La façon dont nous mettons au rancart nos anciens, dévalorises même s’ils sont bien nourri-logés dans les asiles du troisième âge, choque profondèment la mentalité africaine.