VALORES CIVILIZATÓRIOS EM SOCIEDADES NEGRO-AFRICANAS[1]
Fábio Leite[2]
Não obstante a tentativa de se chegar a
conhecimento mais decisivo acerca das sociedades negro-africanas recomendar
abordagens diferenciais que permitam melhor captação de suas realidades
singulares, a abrangência de que se revestem certos fatores manifestados na
diversidade constitui universo privilegiado para a apreensão das propostas de
organização do mundo articuladas por essas civilizações.
Nesse sentido, alguns exemplos comuns a um
grande número de sociedades podem ser lembrados, de maneira genérica e com a
ressalva de que cada grupo é detentor daqueles valores que hes são próprios, o
que lhes confere suas individualidades.
Os tópicos que se seguem referem-se
prioritariamente e muito sinteticamente a três sociedades da África ocidental -
Yoruba, Agni (grupo Akan) e Senufo
civilizações agrárias que, entretanto, se
distinguem fortemente em virtude de suas organizações políticas, pois que,
enquanto os Yoruba e Agni se constituem em sociedades dotadas de Estado, entre
os Senufo essa figura não se caracteriza. Apesar de que os exemplos
relacionam-se basicamente, em suas generalizações, com os grupos citados, junto
aos quais desenvolvemos pesquisas de campo durante alguns anos, parece certo que
são aplicáveis, com a cautela devida às individualidades, a um número não
negligenciável de sociedades negro-africanas, como o demonstra a bibliografia
pertinente e os dados de pesquisa.
FORÇA VITAL
A questão da força vital,
que foi objeto das preocupações de Tempels (1969) e Kagamé (1976), refere-se
àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser,
não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma,
constituem uma única realidade. Importa notar, entretanto, que a vitalidade
universal, capaz de assim individualizar-se, é relacionada com aspectos
precisos da problemática que envolve, possibilitando objetivar as relações que
se estabelecem entre homem e natureza e aparecendo como elemento pertencente ao
domínio da consciência social.
Um aspecto que demonstra ser a força vital
instrumento ligado à estruturação da realidade consubstancia-se na figura do
preexistente, que é tomado como a fonte mais primordial dessa energia, dela
servindo-se para engendrar a ordem natural total dentro de situações ligadas
especificamente a cada sociedade, que, assim, define seu próprio preexistente.
A origem divina da força vital e a consciência da possibilidade de sua
participação nas práticas históricas explicam a notável importância que lhe é
atribuída e, não raro, a sacralização de várias esferas em que se manifesta.
Outra característica desse elemento estruturador é a de que sua qualidade de
atributo vital dos seres, abrangendo os reinos mineral, vegetal e animal,
estabelece individualizações que se hierarquizam segundo as espécies e faz a
natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais variados domínios. Deve ser
ressaltado que no relacionamento existente entre força vital e preexistente na
elaboração do mundo, embora aquele se encontre na base das ações primordiais da
criação, geralmente não se ocupa da totalidade do processo nem de seus
desdobramentos, atividade que confia a certo demiurgos - entes por ele
concebidos - e ao próprio homem. De fato, uma vez ocorrida a doação da
vitalidade que faz configurar a vida individualizada dos seres, estes são
complementados pelos demiurgos, o que também explica parte da dimensão sagrada
de que é portadora a natureza: quando ocorre o ato de complementação, uma parte
da vitalidade desses entes passa a integrar a constituição mais íntima dos
seres, manifestando-se como dimensão específica de sua materialidade. Mas a
elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem nesse intercâmbio
privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao
criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos
ligados à organização da sociedade. É o caso, por exemplo, dos processos de
socialização, com suas etapas iniciáticas - que fazem configurar o homem proposto
pela sociedade em sua dimensão social -, e também das atividades relacionadas
com outras instâncias históricas, onde as ações humanas complementam a obra
inicial do preexistente, colocando-a, com o cuidado e conhecimento exigidos
pela vitalidade que anima os seres, em estreita relação com a sociedade, como
ocorre, para criar outro exemplo, com a manipulação da terra, fator básico da
produção. Pode ser acrescentado ainda que a noção de vitalidade enquanto
elemento ligado à explicação da realidade desdobra-se mesmo até seu nível
empírico mais imediato, manifestando-se na vida cotidiana. Isso ocorre quando
se considera, simplesmente, que algo ou alguém é por motivos que estabelecem
uma relação diferenciada de qualquer natureza, envolvendo real ou simbolicamente
uma propriedade distintiva. De fato, a expressão ele é forte é utilizada
com grande freqüência nas mais variadas situações.
Dessa forma, a noção de força vital não se
limita às instâncias das formulações abstratas, situando-se materialmente no
interior das práticas históricas e da explicação da realidade.
PALAVRA
Dentro do universo que lhe é próprio nessas
sociedades, a palavra emerge como fator ligado à noção de força vital e, em seu
aspecto mais primordial, tem como principal detentor o próprio preexistente.
Nesse sentido, não raro, a palavra aparece como substância da vitalidade divina
utilizada para a criação do mundo, confundindo-se com o chamado sopro ou fluido
vital, sendo que no homem essa herança manifesta-se, em uma de suas formulações,
através da respiração. o conjunto força vital/ palavra/ respiração é elemento
constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o homem o estrutura
de maneira a criara linguagem e o exterioriza através da voz. Outro aspecto
deve ser realçado. Sendo a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do
preexistente, é necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí
que sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez emitida
algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se na natureza.
Nesse sentido deve ser lembrado que a palavra é elemento desencadeador de ações
ou energias vitais. De fato, ao ser dirigida para atingir determinados fins,
interfere na existência pois que, uma vez absorvida, pode provocar reações,
controláveis ou não. É por isso que o aparelho auditivo é assemelhado aos
órgãos reprodutores femininos: ambos são capazes de fazer gestar algo decisivo
pela penetração, no interior dos indivíduos, de um elemento vital desencadeador
do processo.
Naquela sua configuração que a liga
estreitamente às práticas históricas, a palavra é geralmente relacionada com a
problemática do conhecimento e sua transmissão, que se articula em vários
níveis da realidade social. É o caso, dentre outras, daqueles especialistas das
transformações (ferreiros, tecelões, escultores, médicos manipuladores de
folhas e outros elementos, encarregados de ritos iniciáticos e funerários -
universos onde ocorrem mutações na essência do ser humano -, agentes da magia
que se servem da palavra para manipular forças benéficas ou maléficas etc.),
das manifestações da vida espiritual (cultos a ancestrais e divindades,
cerimônias envolvendo a utilização de determinadas máscaras), do domínio da
própria palavra (caso dos historiadores tradicionalistas), das explicações de
certos aspectos da realidade (conhecimento esotérico, jogos divinatórios e
propiciatórios) etc. Em todos esses exemplos a palavra sempre acompanha as
ações de uma maneira ou outra a fim de estabelecer relações entre forças vitais,
as do agente e as do universo a ser explorado. A palavra é, ainda, instrumento
singular das práticas políticas negro-africanas, uma vez que as decisões da
família e da comunidade são tomadas em conjunto mediante a discussão das
questões e exposição da jurisprudência ancestral. Isso ocorre nos conselhos de
família, em âmbito mais restrito, mas também em locais públicos sacralizados
para tal fim, como é o caso da árvore da palavra, geralmente encontrada no
espaço altamente diferenciado que lhe é reservado nas localidades africanas.
A palavra, portanto, é dotada de origem
divina mas encontra-se significativamente relacionada com as atividades humanas
e não deve ser considerada somente como fonte de conhecimento, o que
restringiria seu significado ao universo dominado pelos especialistas da
própria palavra, os historiadores tradicionalistas, figuras sociais bastante
conhecidas nessas civilizações. Na verdade, ela se manifesta nos mais variados
níveis da realidade, e o significativo número de instâncias onde sua
exteriorização é fundamental revela a importância que lhe é atribuída. A
palavra é, sem dúvida, instrumento do saber, mas sua condição vital lhe garante
o estatuto de manifestação do poder criador como um todo, transmitindo
vitalidade e desvendando interdependências. Sua capacidade de comunicação
possui essência diversa daquela proposta pela escrita, elemento apenas cultural
e estrangeiro à natureza e à dimensão mais profunda do homem.
HOMEM
Nessas sociedades o homem é definido como
síntese de alguns elementos vitais que se encontram em interação dinâmica
permanente. Em generalização ampla, é possível afirmar que o homem é
constituído de pelo menos três elementos vitais: o corpo, o princípio vital de
animalidade e espiritualidade e o princípio vital que estabelece a imortalidade
do ser humano.
O corpo, manifestação visível do homem,
possui um complexo externo e outro interno, ambos se encontrando em relação
constante. O primeiro é percebido pela figura, flexibilidade, movimento e
capacidade de criar espaços naturais e sociais. O complexo interno está ligado
à noção de entranhas, que define a manifestação interior de fatores naturais e
sociais, abrangendo - além da explicação relativa aos órgãos e sistemas ligados
à noção de vida física - a capacidade do homem experimentar sentimentos. Deve
ser acrescentado que o significado social do corpo é proposta precisa: ele se
constitui em referencial histórico, aparecendo como fator de individualização,
de trabalho e de reprodução da sociedade. Suas mutações configuram-se como
processos sobre os quais a sociedade exerce ações eficazes tendentes a
dominá-los, como, por exemplo, nos atos iniciáticos ligados à excisão e
circuncisão, onde uma das proposições é a da tomada de consciência da natureza
social de que também se revestem as práticas sexuais.
É da natureza do corpo constituir uma
potencialidade de vida mas as energias que o animam, estruturam e lhes dão
dinâmica são colocadas em ação por um outro elemento catalisador e distribuidor
de forças vitais. Esse é o princípio vital de animalidade e espiritualidade -
não raro identificado como sopro ou fluido vital de origem divina - que se
relaciona com a energia primordial da qual o preexistente é o detentor, o que
estabelece a vitalidade física e espiritual do homem enquanto manifestação de
uma mesma realidade. Esse elemento é decisivo para a configuração da existência
visível, pois sua ausência em um corpo - demonstrada pela falta da respiração e
da palavra - estabelece, regra geral, a separação dos elementos vitais constitutivos
do ser humano, evidenciando-se, então, a morte. Deve ser acrescentado que esse
princípio tem como uma de suas características a capacidade de fazer
individualizar fortemente uma de suas porções, que se manifesta sob a forma de duplo,
concepção de significativa riqueza acerca da dinâmica dos seres. É ainda esse
elemento que permite ao homem viver os sentimentos, sempre experimentados
interiormente. Essa interioridade explica a importância atribuída à noção de
entranhas, que sintetiza essa problemática. Finalmente, pode-se ressaltar que o
princípio vital de animalidade e espiritualidade é dotado de notável capacidade
de mutação e ação - fator observável principalmente através do duplo, um
dos principais agentes da magia nessas civilizações - qualidade que, como no
caso do corpo, pode ser controlada e dirigida através de práticas específicas
ligadas a processos iniciáticos extremamente complexos.
O terceiro grande elemento vital
constituinte do homem é o princípio de imortalidade. Pesquisas levadas a efeito
em várias sociedades negro-africanas demonstram que esse princípio, mais do que
os outros, é inexaurível e indestrutível, resistindo plenamente com sua
individualidade e características, aos efeitos da morte. Liga-se às
propriedades morais e intelectuais do homem, para o qual estabelece uma
identidade social de vez que as realizações dos indivíduos, positivas ou
negativas, são devidas às qualidades naturais desse elemento vital, que aparece
também como a dimensão em que se manifesta o destino humano. Tais atributos
fazem com que esse princípio vital se defina como a instância mais histórica do
homem. Após o fim da existência visível, é ele que propõe a imortalidade do ser
humano, pois volta a fazer parte da comunidade através dos recém-nascidos da
mesma família ou insere-se na massa de antepassados privativa do grupo social a
que pertence, daí nascendo a figura do ancestral, com a qual a sociedade mantém
relações privilegiadas. Deve ser ressaltado que também neste caso a sociedade
possui consciência ótima das potencialidades e características desse elemento
vital, o que lhe permite interferir em sua progressão e, conseqüentemente, no
desenvolvimento da personalidade.
A esses três grandes princípios vitais
naturais que integram a noção de pessoa, devem ser acrescentados aqueles de
ordem social: o nome e a socialização com suas fases iniciáticas, bem como, em
versão ampla do conceito de existência, os ritos funerários, cuja proposta mais
fundamental é a de fazer caracterizar o ancestral, com a carga histórica da
sociedade a que pertence, após os processos caracterizadores da morte.
SOCIALIZAÇÃO
O domínio que a sociedade detém sobre as
mutações do ser humano transparece particularmente bem nos processos de
socialização, com suas fases iniciáticas destinadas a fazer configurar essa
progressão que é orientada para a elaboração de uma personalidade final básica,
capaz de manter e transmitir os valores mais fundamentais do grupo social. O
caráter comunitário da existência exige que os processos de socialização estabeleçam
quais os limites possíveis dentro dos quais os indivíduos exercem sua
mobilidade social, sendo por isso que a formação da personalidade nas
civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo. Esse
humanismo revela que a sociedade propõe a superação, pela consciência da
realidade existencial, das limitações materiais e instrumentais, harmonizando o
homem com as práticas sociais suficientes.
Para alcançar esses objetivos, as crianças
são introduzidas em grupos formados pelo critério de idade, nos quais ingressam
logo após ultrapassadas as fases mais incipientes da infância. Desses grupos
nascem aquelas figuras sociais a que se convencionou chamar de gerações: são
indivíduos que passam por processos educacionais comuns a todos os componentes
dos grupos segundo os estágios de aprendizado em que se encontrem. Em geral as
pessoas atingem juntas a maturidade, submetendo-se coletivamente aos atos
iniciáticos previstos pelo costume e que marcam etapas vencidas. Dessa maneira,
os integrantes desses grupos e dessas gerações adquirem consciência ótima de
sua condição social e dos principais valores, direitos e deveres de sua
sociedade, ligando-se estreitamente em razão da solidariedade que se estabelece
entre eles. Ao vencerem as últimas etapas, são considerados capazes de
integração social e representantes legítimos da sociedade.
A importância atribuída a esses processos é
tão significativa que os indivíduos que não se submetem a eles são
considerados, de certa maneira, como pessoas sem cidadania. Sofrem as mais
severas restrições em todos os níveis: não podem estabelecer contratos de
casamento e, conseqüentemente, não obtêm cessões de terra; a eles é vedada a
manifestação verbal nos conselhos de família e da comunidade, ficando impedidos
de participar das decisões; e não chegam a assumir funções de importância para
a comunidade.
MORTE
A proposta de imortalidade do homem explica
em grande parte a extraordinária importância que é atribuída à morte e às
cerimônias funerárias. De fato, a morte apresenta-se como fator de
desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em que
se encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado que se faz
configurar a existência visível. Tal capacidade torna a morte um evento abrangente
devido à interferência que exerce em vários níveis da realidade, desde as
concepções que definem o homem até à necessidade de recomposição dos papéis
sociais, principalmente quando sua ação recai sobre mandatários de significado
social notável, como chefes de família, de comunidade ou reis, figuras que
tendem a sintetizar as ações históricas mais expressivas para o grupo.
A sociedade, entretanto, reorganiza-se
rapidamente a fim de promover a superação da morte e restabelecer o equilíbrio,
o que é conseguido através das cerimônias funerárias. Nestas, uma proposição
básica é a da superação cultural da morte através de atos tendentes a
caracterizar a natureza exterior à ordem social que lhe é atribuída. Outra
dimensão fundamental das cerimônias funerárias é a da participação efetiva da
sociedade nos processos de separação dos elementos vitais que constituem o
homem, desagregados pela ação da morte, fazendo-os inserir-se em instâncias
precisas da natureza, como a terra que recebe o corpo - salvo nos casos de
mumificação e ingestão ritual - e as massas de vitalidade às quais geralmente
retorna o princípio de animalidade e espiritualidade. Já o princípio vital de
imortalidade é encaminhado ao mundo privativo dos ancestrais, no qual passa a
manifestar-se, em outras condições existenciais e desde que não venha a fazer
parte de um novo membro da comunidade. Esses fatores explicam a notável
importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser
consideradas como ritos de passagem, de outro se constituem em ritos de
permanência, pois delas nascem os ancestrais.
A complexidade das cerimônias funerárias
não é devida, assim, a fatores de ordem psicológica: elas revelam a capacidade
de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar continuidade à
vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se
configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social. Assim como
nos processos de formação da personalidade, a tarefa de promover a superação da
morte é de alçada da comunidade como um todo.
ANCESTRAIS E ANCESTRALIDADE
Nessa complexa proposição da existência,
que coloca a morte dentro da vida, os ancestrais negro-africanos constituem,
juntamente com a sociedade e sem dela separar-se, um princípio histórico material
e concreto capaz de contribuir para a objetivação da identidade profunda de um
dado complexo étnico e das suas formas de ações sociais. De fato, as principais
instâncias das práticas históricas são dotadas de alguma dimensão ancestral,
tais como: preexistente e suas interferências na sociedade; divindades e
criação do mundo; natureza, homem e sociedade; espaço e tempo; conhecimento;
configuração da família e da comunidade envolvendo relações com a produção e o
trabalho; socialização e educação, natureza e legitimação do poder
estendendo-se inclusive à concepção da figura a que se denomina Estado, quando
essa figura aparece.
Nesse sentido, o princípio histórico
estabelecido pelos ancestrais é elemento objetivador das regras mais decisivas
que regem a estrutura e a dinâmica dessas sociedades. Torna-se necessário ainda
indicar que esse princípio ancestral é suficientemente amplo para incluir, além
dos ancestrais nascidos do homem - os ancestrais históricos -também as
divindades e até mesmo o preexistente, pois que os dados de realidade indicam
que todos esses seres estão indissoluvelmente ligados à explicação do mundo e à
organização da realidade, não obstante as diferenças de substância.
É por tais motivos históricos, que
transcendem as esferas da espiritualidade e da religiosidade, que as relações
estabelecidas pela sociedade entre as massas ancestrais e as massas de
processos sociais dotados de dimensão ancestral, produzem urna síntese que,
tomada em sua concretude e dinâmica, constitui a abstração a que denominamos
ancestralidade.
Ou seja, aquilo que sem maiores fundamentos
se costuma chamar de "tradição", "tradicional",
constitui-se em amplíssimo vício de linguagem ou conceito equivocado de larga
utilização, diminuindo a possibilidade de captação material das raízes de
processos sociais específicos que vão se reestruturando no tempo e no espaço
sem perda da essência das principais propostas adotadas sucessivamente.
FAMÍLIA
A família negro-africana típica em
sociedades agrárias, conhecida pela denominação de família extensa, é
constituída por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco. Nas
sociedades de organização matrilinear, figura que aqui serve de exemplo, o
parentesco formula-se pelos laços uterinos de sangue, razão pela qual a mulher
é a única fonte de legitimação das descendências. Estas constituem, assim, o
núcleo fundamental que define a família, sendo que em suas bases encontram-se
as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. É devido a essa configuração do
parentesco que os direitos e deveres são institucionalmente transmitidos de mãe
a filha, de irmã a irmã, de tia a sobrinha e, quanto aos homens, de irmão a
irmão, e de tio a sobrinho. Esses pressupostos são válidos também para a
sucessão nas chefias, inclusive para a sucessão do rei naquelas sociedades
dotadas de Estado, sendo aspirantes legítimos ao exercício desses cargos os
indivíduos ligados à ascendência uterina. Essa fórmula tende a preservar o
patrimônio genético estabelecido pela mulher para fins institucionais, pois que
na organização matrilinear uma proposição básica é a de que nenhum homem pode
provar que é o pai de seus filhos, os quais, entretanto, contém
obrigatoriamente o sangue de suas mães.
Sob o prisma de sua formulação sangüínea, a
família extensa de organização matrilinear transcende, portanto, o espaço
físico, abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco uterino a
ancestrais mulheres comuns. Em termos de sua estrutura física, a família
extensa compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela
ligadas. A primeira é constituída pelo patriarca-chefe, sua esposa ou esposas e
filhos, seus irmãos, mulheres e filhos daqueles, suas irmãs, tias e sobrinhas
solteiras ou viúvas, assim como os filhos destas últimas. Quanto às famílias
conjugais, elas são formadas pelo esposo, esposa ou esposas e respectivos
filhos. Reunidas em um mesmo espaço físico para práticas comuns ligadas à
produção, essas famílias fazem configurar a família-aldeia, unidade de produção
dotada de aparatos materiais, jurídicos e políticos destinados à sua
administração. Deve ser acrescentado que a família extensa pode constituir-se -
além dos descendentes de ancestrais-mulheres comuns - de indivíduos
pertencentes a outras descendências, dos descendentes de cativos agregados e
ainda de pessoas pertencentes a outros grupos étnicos que se filiam a uma
aldeia em busca de cessão de terra para cultivo. Porém, qualquer que seja o
número de estrangeiros eventualmente incorporados, a família receptora detém os
direitos e deveres ligados à administração.
PRODUÇÃO
Nessas sociedades, os processos de produção
são baseados essencialmente na suficiência destinada ao atendimento comunitário
de necessidades vitais e específicas, razão pela qual o uso alternativo dos
bens de produção não constitui fator decisivo das relações econômicas. Alguns
dados, apresentados de maneira genérica, demonstram como a natureza comunitária
da produção formula-se materialmente enquanto elemento decisivo da realidade
social.
A terra, principal recurso natural dessas
sociedades agrárias, é considerada ela mesma como uma divindade e sua
fertilidade é tomada como doação preexistente. Dotada dessa energia vital que a
sacraliza, a terra não pode ser apropriada pelo homem, que, entretanto, está
potencialmente habilitado a ocupá-la segundo as normas ancestrais. Para tanto,
é necessário organizar e sacralizar essa relação, o que é conseguido através de
pactos selados entre o homem e a terra, daí nascendo os deveres e direitos de
ocupação, sendo o principal deles a inapropriabilidade do solo e sua
transmissão, nesse estado, às gerações que se sucedem. Os pactos são
estabelecidos por famílias que ocupam uma área demarcada segundo o costume,
cabendo-lhes então o direito de usufruir da fertilidade da terra e o dever de
administrá-la, podendo inclusive praticar cessões a terceiros de algumas de
suas partes sem que ocorra, entretanto, um desmembramento da totalidade. Essas
características explicam a notável importância atribuída aos
ancestrais-fundadores, que promoveram os pactos de ocupação, assim como aos
zeladores da terra e da manutenção das alianças, que os sucedem.
Outro fator decisivo da produção - os
instrumentos de trabalho – também se organiza a partir das relações
estabelecidas entre o homem e a natureza. A origem divina da terra exige,
segundo os pactos, que os instrumentos destinados à sua manipulação sejam
fornecidos por ela mesma. Para esse fim, a matéria-prima necessária é retirada
da terra e processada em fornos, transformando-se em ferro, com o qual são
elaboradas as ferramentas destinadas ao trabalho. Importa notar que os aparatos
tecnológicos existentes para tal fim encontram-se, como na produção, limitados
à sua utilidade específica: destinam-se exclusivamente ao atendimento de
necessidades sociais vitais da comunidade. A tecnologia suficiente de que são
dotadas essas sociedades elimina a possibilidade da criação de necessidades
artificiais ligadas à concepção segundo a qual o bem-estar depende da evolução
instrumental.
Das alianças seladas com a terra pelas
famílias nascem, como indicado antes, as unidades de produção e a comunidade,
elementos sintetizados na família-aldeia. Dentro dessa proposta comunitária que
orienta a existência social, o trabalho transparece como outro grande
instrumento da produção, encontrando-se vitalmente associado a ele segundo as
normas de interdependência estabelecidas por outros fatores que não os
meramente econômicos. É bem verdade que nessas sociedades o trabalho se traduz
como ação comunitária por excelência, pois que a sociedade dedica ao labor
coletivo cerca de dois terços do tempo destinado às atividades agrárias. O
tempo restante é usado para o trabalho exercido em subáreas cedidas às famílias
conjugais que compõem a família extensa, possibilidade esta que é, entretanto,
vedada aos homens solteiros. Os jovens que ainda não concluíram formalmente as
fases finais de iniciação integrantes dos processos de socialização, dedicam-se
integralmente ao trabalho comunitário. Existe ainda os trabalhos em mutirão,
que estabelecem reciprocidade. As pessoas jovens devem trabalhar mais do que as
de idade mais avançada, e as atividades são organizadas de maneira a que
aquelas, terminadas suas tarefas, ajudem estas a concluir as suas. Finalmente,
a comunidade assegura às pessoas idosas, sem condições de carregar e manipular
a enxada, o direito de não mais trabalhar a terra, não lhes faltando o
essencial em seus celeiros até a morte. Mas o caráter comunitário de que se
reveste o trabalho não encontra sua materialidade apenas no caráter coletivista
da produção. De fato, nessas sociedades a força de trabalho faz parte da
personalidade e não se encontra separada da totalidade vital que configura os
indivíduos, não podendo, portanto ser apropriada. Ela é, assim, cedida à
comunidade sob a forma de elemento estruturador de papéis sociais, condições em
que o trabalho integra-se qualitativamente nas práticas ligadas à produção
enquanto fator de vida social total, fazendo emergir o indivíduo historicamente
consciente das ações que deve à sociedade. Dentro de tais pressupostos,
compreende-se melhor o alcance dos processos de socialização, que visam
elaborar uma personalidade-padrão adequada à estruturação da sociedade.
Evidentemente a produção, nessas sociedades
agrárias, é elemento estrutural cuja importância se afigura mais ainda decisiva
quando se têm em conta as duras condições de que se reveste o trabalho da
terra, único meio de subsistência. Mas a natureza sagrada da terra, impondo os
pactos e toda a normativa que estes estabelecem, garante à sociedade deter, em
suas instituições abrangentes e comunitárias, os recursos naturais, materiais e
a força de trabalho como fatores unificados da produção. Por outro lado, a
produção suficiente, limitada, assim como a tecnologia, às necessidades sociais
vitais, impede a emergência de excedentes passíveis de serem apropriados por
camadas sociais privilegiadas.
PODER
Nas sociedades sem Estado o exercício do
poder é fortemente concentrado em relação às unidades de produção - as famílias
pactuadas com a terra, dotadas de auto-suficiência e que fazem configurar a
família-aldeia -, mas difuso quando colocado em relação com a sociedade global,
formada pelos grupos integrantes de um determinado complexo cultural. Já nas
sociedades dotadas de Estado, a concentração do poder recai sobre um elemento
centralizador, que abrange o conjunto da sociedade e que se manifesta
essencialmente na figura do rei, devendo ser ressaltado que o Estado aparece
como figura relacionada com cada grupo integrante de um determinado complexo
cultural. Em ambos os casos, entretanto, existem mecanismos moderadores do
poder, como os conselhos de família e de comunidade, as chefias de família, os
encargos ancestrais atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de
iniciados que exercem funções políticas. Também em ambos os casos evidencia-se
uma consciência ótima acerca do território ocupado, manifestando-se a unidade
cultural, dada especialmente por uma língua básica (não obstante suas eventuais
variações regionais), origens ancestrais comuns e organização social e política
semelhantes. Nas sociedades sem Estado, a noção de território é mais
fragmentada e os limites onde ocorrem o exercício do poder restringem-se às
áreas ocupadas pelas famílias-aldeias e à comunidade originada por elas, embora
estejam perfeitamente estabelecidos, entre os vários grupos, os laços
decorrentes de origens históricas comuns. Quanto às sociedades dotadas de
Estado, o território é também o conjunto de unidades de produção sobre o qual o
rei exerce uma interferência decisiva: ele é o principal guardião da unidade do
Estado e de sua administração.
Uma questão específica relacionada com a
configuração e legitimação do poder pode ser aflorada com o intuito de melhor
objetivar alguns aspectos da problemática, servindo de exemplo, mais uma vez, as
sociedades de organização matrilinear.
Nelas, a trama ancestral nascida do
parentesco configurado através dos laços uterinos de sangue faz emergir o papel
fundamental exercido pelas mulheres na divisão do poder, pois, devido a essa
edificação das descendências e, conseqüentemente, das linhagens, elas
interferem decisivamente nos processos de sucessão, inclusive na sucessão do
rei, quando é o caso. Como a sociedade é dirigida por homens, parece haver aí
uma contradição. Mas, ao contrário, essas instâncias são complementares.
As mulheres constituem fontes de
legitimação na medida em que apenas elas fazem configurar as descendências e as
posições dos indivíduos na estrutura da família para fins de sucessão e
conseqüente acesso ao poder. É o caso concreto dos conselhos de mulheres
descendentes de ancestrais-mulheres comuns, aos quais cabe indicar aos
conselhos de homens os nomes Possíveis daqueles que podem aspirar legitimamente
ao acesso a um cargo, inclusive o de rei, respeitadas as demais regras de
sucessão. Quanto aos homens, eles são, enquanto chefes e mandatários, guardiões
dos pactos selados com a terra, responsáveis pelas ações do elementos de
família dentro e fora dela, zeladores da ordem e também os principais elementos
de comunicação entre a comunidade e os ancestrais pois a eles cabe a direção e
mesmo a execução dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos
antepassados. Esta última atribuição demonstra particularmente bem a extensão
do poder patriarcal nas sociedades negro-africanas, de vez que esse
relacionamento diferenciado com os ancestrais - veículos de transmissão de
força vital e fertilidade – é fator fundamental dos valores civilizatórios
propostos por essas sociedades. Mas nas civilizações dotadas de organização
matrilinear a legitimação histórica e jurídica desse poder emana, na realidade,
da mulher.
***
A observação periférica e a explicação
baseada em bibliografia que tende a marginalizar ou minimizar a abrangência dos
dados de realidade tal como emergem do próprio objeto ou, ainda, calcada em
pressupostos teóricos nascidos substancialmente do pensamento estrangeiros à
realidade negro-africanas, podem constituir-se em instrumentos capazes de
induzir à consideração equivocada de que valores civilizatórios típicos do
universo histórico dessas sociedades - dos quais alguns exemplos foram citados
-não mais possuem espaço para sua manifestação concreta em face dos processos
de mudança social, tratando-se de restos culturais inexpressivos e em vias de
desaparecimento rápido.
É bem verdade que processos históricos
abrangentes, ligados à dinâmica das mudanças sociais e tendentes à
universalização, impactam crucialmente padrões civilizatórios pecualiares, mas
essa realidade não se aplica apenas às sociedades negro-africanas, tratando-se
de fator que se configura, menos ou mais intensamente e conforme o grau
qualitativo das conjunturas, em nível planetário. Não se pode esquecer,
entretanto, que tal realidade não implica, necessariamente, na destruição de
singularidades.
Tal proposição não se formula apenas ao
nível de fator histórico com o qual se defrontam as sociedades negro-africanas
na atualidade. De fato, embora tais processos universalizantes se apresentem
hoje sob formulações capitais para o conjunto da humanidade, eles já
integraram, nas modalidades próprias das etapas históricas de suas
manifestações, as realidades totais das civilizações de que se trata aqui.
Realmente, a história evidencia, por exemplo, que não obstante todos os
processos desestabilizadores e desestruradores - alguns da mais extrema
crueldade - impostos a essas sociedades em épocas não tão distantes, elas
absorveram os impactos decorrentes e os transformaram, em fases - e não
totalidades - de sua realidade, fases essas que, embora marcando época, não
foram suficientes para levá-las à aniquilação. Ou seja, as sociedades
negro-africanas sempre viveram suas própria realidades no fluxo de processos
sociais abrangentes, que se definem seja em relação a grupos extensos
caracterizados pelos diversos complexos culturais, seja em relação ao conjunto
de civilizações negro-africanas, que formam, mais do que uma simples
constelação de povos, um universo histórico elaborado pela rede de relações
sociais totais típicas do universo social que define essas sociedades. Em
outras palavras, essas civilizações mantiveram e mantém a sua continuidade
histórica - e não apenas a sobrevivência histórica - e nesse processo a
natureza singular de seus valores civilizatórios é mecanismo de sua
materialidade.
Para a tentativa de conhecimento mais amplo
e verdadeiro dessas sociedades a análise diferencial - aquela que tem em conta
a realidade mais decisiva para compreensão do objeto em situações históricas
específicas – constitui-se no instrumento mais qualitativamente capaz de situar
convenientemente a singularidade das civilizações negro-africanas e,
conseqüentemente, definir as medidas e abrangências de suas realidades vitais
em face dos processos de mudança social. Essa metodologia - que implica ainda
em trabalho de campo intenso a fim de conhecer os homens e as sociedades para a
elaboração de instâncias empíricas suficientemente capazes de fornecer bases
para abstrações justificadas - pode permitir ao estudioso abandonar critérios
estrangeiros ao universo a conhecer, venham de onde vierem e, mais, exercitar
sua capacidade crítica com a consciência das peculiariedades históricas com as
quais se defrontará.
Adotando-se essa postura metodológica, a
singularidade intrínseca dos padrões civilizatórios das sociedades
negro-africanas e sua abrangência são fatores que podem ser melhor percebidos
através de suas totalidades, consubstanciadas nas tipologias de ações e
processos históricos que estruturam as práticas sociais e fazem emergir a visão
de mundo que as explicam. É nesse contexto que se inserem os exemplos citados
neste texto - e certamente muitos outros, não abordados -, os quais constituem,
de certa maneira, situações-limite, pois que dotadas de significativa
expressão. É também nessa totalidade e nessas tipologias que deve ser situada a
problemática da comunidade histórica antes referida, a qual revela, em última
instância, a natureza da dinâmica dos processos históricos dessas civilizações:
elas são capazes de absorver novas propostas, oriundas de vários horizontes, e
reproduzi-las com a autonomia garantida pela sua materialidade própria e
criando novas sínteses. Essa capacidade sintética, que mantém a singularidade
na pluralidade, permite considerar que essas civilizações não se encontram
fechadas e voltadas para si.
De fato, as proposições inerentes a padrões
civilizatórios específicos são válidas para a maioria dos povos
negro-africanos, e sua materialidade se manifesta, na atualidade, até mesmo nos
centros urbanos de porte - onde se adaptam às circunstâncias impostas por elas
- para não falar nas comunidades e localidades onde são perfeitamente
observáveis pelo pesquisador que se dedica ao trabalho de campo. A existência
desses valores não significa a cristalização de resíduos culturais capazes de
estabelecer uma dualidade. Significa, mais apropriadamente, a existência de uma
busca constante, nas fontes originárias, de proposições consideradas mais
legítimas e sua dinamização em face de novas realidades, ou seja, a existência
de uma só africanidade construindo sua própria história. Parece prematuro avaliar
se os padrões civilizatórios que integram esse universo sofrerão mutações tão
notáveis que desaparecerão completamente por força de processos históricos
tendentes a uniformizar culturas singulares. No mesmo, a proposta que parece se
colocar significativamente à reflexão é a de que essas civilizações oferecem à
humanidade perspectivas próprias que não podem ser ignoradas.
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